"A dor permanece escondida no mais recôndito espaço da minha
memória.
A tristeza e a dor foram enviadas para o mais fundo do
subconsciente.
Na devida altura em que os meus olhos deviam ter desaguado os rios do meu sofrimento, não houve tempo, não houve hipótese...
Compromissos e reuniões fúteis, pura perda de tempo, com homens
arrogantes e cheios de certezas, exigiam de mim a presença de espírito e
a clareza de raciocínio próprios de alguém que não a Naná recém
órfã...exigiam um estar que eu não era capaz de cumprir, mas cumpri
mesmo perante a insensibilidade destes homens que nunca perderam nada na
vida ou nunca souberam o que era perda. Já eu, com tão pouca idade,
conhecia a perda de um progenitor bem demais...
Estes homens arrogantes
que ainda ousaram escarnecer da minha tristeza e usá-la como razões para
me atacarem no desempenho profissional. Mas eu permaneci de cabeça
erguida, não sei ainda bem à custa de que forças e em nome do quê ou de
quem... mas escolhi não dar parte fraca diante de homens ignorantes do
que é a morte... já que eu, por esta altura já quase a tratava por tu!
Homens ignorantes e altivos que sucumbiriam facilmente à enorme e
profunda tristeza de perder alguém que nos deu vida.
Passei a viver
maquinalmente, como forma de me manter à altura daquilo que me era
exigido!
Quando eu precisava chorar convulsivamente até ficar sem fôlego e o
ar me faltar porque os soluços me impediam de fazer esse simples
exercício de inspirar e expirar, tive que engolir tudo... porque chorar
tornou-se supérfluo diante das necessidades maiores do meu pequeno
filho. Não porque ele não me deixasse, mas apenas e tão só porque não
quis que ele visse e sentisse as minhas lágrimas... Decerto deve ter
sentido a minha tristeza, porque eu sentia a sua agitação, diferente do
habitual.
Carpir foi sempre sendo adiado, em nome de valores mais urgentes e
prementes. A dor foi mitigada a martelo e coberta em esquecimento. Nas
raras ocasiões em que as lágrimas ganharam a batalha, era sempre de
fugida e às escondidas...de algum modo os demais esperavam que eu
mostrasse o meu lado mais forte, que fosse a "força da natureza" que
sempre se apresentou diante deles. O "furacão" como alguns me apelidavam
carinhosamente...
Mas tudo o que mais desejava era entregar-me à dor, deixar que ela
me abraçasse e que a lágrimas me brotassem dos olhos até eles ficarem
doridos e eu adormecer de cansaço e exaustão... esse fadiga incomportável que eu sentia mesmo sem
chorar, todos os dias!
Recalquei para o fundo de mim tudo o que me trazia tristeza.
Continuei em vão a comportar-me como se ainda cá estivesses... cheguei
mesmo a pegar no telefone para te ligar como fazia dia sim dia não, mas
depois aquela parte do cérebro dizia apenas que já não podia, sem
invocar o motivo...
Depois esperei meses antes que fosse capaz de dar destino aos teus
pertences, uma tarefa que fui adiando pela dificuldade que eu própria
lhe cunhei. As forças faltavam-me e o meu coração estremecia sempre que
isso me perpassava o pensamento. Comecei timidamente, mas tive que
parar, porque o efeito foi devastador... deitei no contentor coisas tuas
à bruta, com uma violência similar a um rasgar de carne, como que para
me ferir propositadamente, uma penitência auto imposta... um castigo a
mim mesma, por não te ter chorado com o respeito e o amor que se impunha
e que tu merecias...
Aquele pedido de desculpas que te fiz duas semanas antes, por todos
os diferendos que tivémos, todas as batalhas de incompreensão mútua que
travámos... ainda hoje não sei se o leve aceno que fizeste foi um
movimento involuntário ou se o fizeste por estares consciente mesmo
debaixo do coma profundo... e com isso quisesses apaziguar a minha
tristeza por já não ouvir a tua voz e assim convocasses as tréguas que
sempre precisámos e que se tinham ido sedimentando ao longos dos teus
últimos tempos de vida.
Bloqueei na minha mente a tua imagem jazente de fato vestido,
ladeado pelo lençol de cetim da urna. Essa imagem ficou gravada mas
dormente até à noite em que do nada emergiu, quando via um episódio da
Anatomia de Grey. Já não mais pude negar tal acontecimento. Não pude
desta vez manter a impávia como no momento em que aconteceu...
Dei vazão à dor e aquela tua imagem, gélido e pálido, caminha
comigo desde então no pensamento, a memória vívida, como se do próprio
momento se tratasse!
Das tuas posses e pertences desfiz-me mais ou menos, mais de
dezoito meses passados do teu desaparecimento, por imposição de obras
que encetei naquela casa que ainda hoje digo que é tua, apesar de estar
no meu nome, como diz a tua irmã mais velha e bem.
Foi forçado o
declutter dos teus bens materiais, mas eu continuava e ainda continuo
agarrada aos bens emocionais que me deste, que preciso ir exorcizando
lentamente, porque tudo o resto foi feito à velocidade de um comboio de
alta velocidade, que de mim não se compadeceu... ao contrário do que
aconteceu com a mãe, não deixei que a tua morte me definisse... ou pelo
menos quis crer que não! Estava enganada, redondamente... todas as
perdas marcam a alma, como um ferro quente, que me deixa em carne
viva...
No entanto, é assim que começo lentamente a iniciar um luto que
deveria ter iniciado antes mesmo de teres partido, porque o desfecho já
se conhecia... começo demasiado tarde, mas finalmente começo. Meu
querido pai, meu herói na infância, homem a quem admirei qualidades, a
quem sempre senti o amor e carinho e mais tarde, o orgulho, apesar de
sempre ensombrado por críticas, umas abertas, outras mais encapotadas. A
quem dei a alegria de um neto, que tristemente não pudeste acompanhar
mais tempo, como sempre quiseste e como sempre desejei!
Apesar de todos os diferendos que tivemos, não poderei nunca negar o
quanto te amei e ainda te amo. Por eu te amar tanto, o teu neto hoje
sabe que teve um "vô Bél", mas ainda não sabe como traz encerrado na sua
genética traços teus, que só quem te conheceu consegue identificar!
Este é um primeiro adeus, pai. Não a ti, mas à dor e à tristeza de
te ter perdido e à incerteza que carreguei sobre se poderia ter feito
mais por ti, para evitar as consequências do tumor que te vitimou,
silencioso.
Decido hoje que não posso mais carregar essa incerteza, porque o que foi já o foi e nada mais se pode fazer para o desfazer!
Decido hoje, como decidi há 13 ou 14 anos, depois da morte da mãe,
que as coisas acontecem de uma determinada maneira, porque era
necessário que assim fosse... e não mais posso chorar sobre um leite
derramado, em que não tenho poder para alterar seja o que for!
Hoje decido preservar a tua memória, a melhor dela! A do homem e pai que eu sempre admirei!
Amo-te muito papá"
Escritos, 24Abril2012
2 comentários:
Partilho tudo, tudo, tudo, tudo. E dou-te um abraço urso, Naná. Um dia dou-to um a sério e talvez possamos chorar muito juntas sem fazer perguntas.
(Mas ainda não cheguei à fase de preservar a memória, mesmo oito anos depois).
Tenho que ler isto à minha mãe, ou melhor, dar-lhe a ler, que o mais certo era eu desatar num pranto a meio, como aconteceu agora.
A minha mãe é nova, tem apenas 45 anos e no espaço de 3 anos perdeu o pai e a mãe (ambos na casa dos 60).
Beijinhos e um Natal muito feliz.
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