26 de setembro de 2013

Lar, doce lar

Lembro-me que mudámos para o apartamento no início de Dezembro, tinha eu os meus quatro anos acabados de completar.
Recordo-me da tarde em que a minha mãe me disse "escolhe lá qual é que queres que seja o teu quarto!" e eu escolhi instintivamente o que fica virado a nascente, tal como a porta de entrada do prédio.

Foi ali que o meu pai montou a cama que iria substituir a minha cama de grades, uma cama de casal só para mim! Com a cómoda e um espelho a condizer, e a cabeceira da cama cheia de prateleiras e as mesas de cabeceira embutidas, como era moda no início dos anos 80.

Adorava andar descalça na alcatifa cinzenta do meu quarto, mas detestava a vermelha que atapetava a sala e o corredor.

Tive sempre medo de entrar no quarto "onde ninguém dorme", porque durante meses a fio acreditava que existiam monstros debaixo da cama. Mas sabia que era no guarda-fatos desse quarto que a minha mãe escondia as minhas prendas de Natal e isso despertava em mim o espírito de aventura.

Com o passar dos anos, eu fui crescendo e a casa envelhecendo e degradando-se.

Ali vivi momentos felizes com os meus pais, e onde vivi também os mais tenebrosos, principalmente os últimos meses de vida da minha mãe.

Era o meu porto seguro quando vinha da faculdade, a cada quinzena. Revia o meu pai, e retornava ao meu quarto, ainda com o poster gigante do Danças com Lobos a orlar a parede.
No roupeiro, permanecia ainda pendurado o meu vestido de baptizado, o vestido de casamento da minha mãe e um vestido roxo dela com decote em V e pregas largas na saia, feito com cetim bordado que um ex-namorado lhe trouxera de Goa.

Foi dali que saí para o meu apartamento. Deixei alguns livros nas prateleiras, bibelots oferecidos pelas tias e primas e três ou quatro peluches. E o baú trabalhado com cenários japoneses, contendo todo o enxoval que a minha foi reunindo ao longo dos anos...

Foi naquele apartamento que o meu pai viveu 14 anos de solidão, apesar das minhas visitas frequentes.

Quando ele faleceu, foi ali que chorei enquanto separava as suas roupas e pertences.
Durante 18 meses, perdi o chão e fiquei sem saber o que fazer ao apartamento onde vivi mais de metade da minha vida...

Foi renitente que o esvaziei para recuperar... as obras de reparação/recuperação foram um martírio que se prolongou por demasiados meses... e eu continuei sem grande noção do que fazer...


Mobilei-o, decorei-o minimamente e pus-lhe cortinados escolhidos a gosto, como se fossem para mim.

Hoje entreguei as chaves da porta, da caixa do correio e da porta de entrada a uma ex-vizinha a quem o decidi arrendar.

Não sem antes voltar a entrar e olhar em volta.
O apartamento onde cresci, que está de cara lavada e não tem qualquer resquício do que foi quando ali vivi, à excepção das divisões e compartimentos... 

Lentamente, algumas coisas começam a definir-se e parece que tudo se vai encaixando nos seus lugares...

5 comentários:

dona da mota disse...

Ai Naná, estou muito comovida com o que escreveste... tanto que nem sabia se devia comentar...
No entanto, a ultima linha acaba por mostrar exactamente o que escreveste e é importante... que tudo se vá encaixando...
Beijo grande!

Susana Andrade disse...

Na vida por vezes temos tendência de deixar intactas as coisas por forma a não 'estragarmos' a memória que as coisas nos lembram. Mas na vida temos que seguir em frente e guardar essas memórias no nosso coração, o lugar certo para memórias que tanto nos alegram como nos fazem chorar...

Magda disse...

precisaste do teu tempo, mas é importante seguir em frente. um beijinho

Dora disse...

A última frase prova que estás no caminho certo - deixaste as memórias fluir, passar por ti, marcando o que devia ser marcado. Sofrer também está certo, no seu devido tempo. E a felicidade que viveste nessa casa será sempre tua.
Beijinhos

Tanita disse...

E poderás finalmente arrumar o teu coração. Será?!