27 de agosto de 2013

O "Gama"

Costumava vê-lo em diversos locais da cidade.
Eu e os meus colegas costumávamos comentar as semelhanças físicas com Karl Marx, mas numa versão talvez mais jovem.

Por vezes questionava-me quem seria, porque era habitual ele estar sempre sozinho. Era uma figura um tanto solitária e parecia haver uma qualquer tristeza no seu semblante.

Um certo dia, ao final da tarde, já naquele lusco-fusco da noite prestes a cair, vi-me sozinha na paragem do trolley n.º 3 que saía de Santo António dos Olivais, apenas com ele por companhia.

Trocámos olhares. A sua barba grisalha e farta dava-lhe um ar sombrio àquela hora... senti um certo arrepio, uma apreensão inexplicável ao de leve.

Até que ele tomou a iniciativa e encetou uma qualquer conversa de circunstância.

O meu ser preconceituoso e pejado de julgamento de valor imediatamente gritou em silêncio: "mais um dos maluquinhos que povoam a cidade de Coimbra."

Esgotada a conversa de circunstância, apresentou-se:

- Olá eu sou o Gama.

Os olhos dele sorriram e a minha apreensão como que se suavizou...

Nos dez minutos em que nos vimos ali parados, aguardando o n.º 3, o Gama contou-me resumidamente que era um ser solitário, porque a vida dele era difícil mas que não se sentia bem com a solidão.

O seu filho de 19 anos sofria de esquizofrenia e nos surtos mais intensos, tentava partir para a agressão física, tendo mesmo empunhado uma faca de cozinha contra a mãe. Admitiu que a esposa tinha maior capacidade para lidar com a situação do que ele... ele preferia sair de casa, mesmo que sem destino.

Fui-me apercebendo que o Gama era apenas e só um homem um tanto amargurado pelo desenrolar do destino do seu filho e que para fugir àquela realidade procurava desesperadamente a companhia alheia, de estranhos, de conhecidos, de quem se apresentasse disponível para o ouvir. 

Essa necessidade parecia acentuar-se particularmente nos períodos em que o filho se encontrava mais instável...

Encontrei o Gama muitas mais vezes ao longo do meu percurso académico, quase invariavelmente no Tropical, no Cartola ou no bar da Associação Académica, onde os estudantes se costumavam concentrar, sedento de companhia com quem pudesse meter conversa e falar de política, história, arte, o que fosse.

Sentir-se incluído em debates, principalmente com os muitos estudantes, que o estimulassem mentalmente fazia-o sorrir, parecia que os olhos brilhavam e o rosto iluminava-se.

No fundo, o Gama só queria alguém com quem pudesse conversar e talvez, quem sabe, abstrair-se da doença do filho.

Desde que terminei a licenciatura nunca mais o vi.

Mas às vezes lembro-me do Gama, que além de ser muito parecido com o filósofo, também gostava de filosofar. 
Especialmente acompanhado...

3 comentários:

luisa disse...

Estas figuras que povoam as cidades atraem a nossa atenção e marcam a nossa memória. Gostei de ler esta história.

gralha disse...

Não sei porquê, sinto mais empatia com a mulher do Gama - que provavelmente não tinha a opção de deixar o filho doente e andar a passear pela cidade.

Naná disse...

Luísa, o Gama era mítico para mim!

Gralha, compreendo o teu ponto de vista... no meu caso, a dúvida sempre ficou comigo: se me sucedesse, o que faria eu?!