7 de fevereiro de 2013

O medo #1

"Tenho de dizer uma palavra acerca do medo. É o único verdadeiro adversário da vida. Só o medo pode derrotar a vida. É um adversário esperto e ardiloso, que eu bem o sei. Não tem decência, não respeita lei nem convenção, não mostra piedade. Vai ao nosso ponto mais fraco, que encontra com uma facilidade certeira. Começa sempre na nossa mente. Num momento, estamos a sentir-nos calmos, seguros, felizes. E, depois, o medo, disfarçado com as vestes da dúvida afectada, introduz-se na nossa mente como um espião. A dúvida encontra a descrença e a descrença procura empurrá-la. Mas a descrença é um soldado de infantaria mal armado. A dúvida vence-a sem grande dificuldade. Tornamo-nos ansiosos. A razão vem travar a batalha por nós. Somos tranquilizados. A razão está bem equipada com a última tecnologia das armas. Mas, para nosso espanto, a despeito da táctica superior e de um inegável número de vitórias, a razão é vencida. Sentimo-nos enfraquecidos, vacilantes. A nossa ansiedade torna-se pavor.
Depois o medo trabalha todo o nosso corpo, que já está ciente de que qualquer coisa terrivelmente errada se está a passar. Já os nossos pulmões saíram voando como pássaros e os intestinos deslizaram como uma cobra. Agora a nossa língua pende morta como um gambá, enquanto o maxilar começa a galopar no mesmo sítio. Os ouvidos estão surdos. Os músculos começam a tremer, como se tivessem malária, e os joelhos abanam, como se estivessem a dançar. O coração retesa-se com demasiada força, enquanto o esfíncter se relaxa demasiado. E assim acontece ao resto do corpo. Todas as partes do corpo, da maneira mais própria de cada uma delas, se desintegram. Só os olhos funcionam bem. Eles dão sempre a devida atenção ao medo.
Tomamos rapidamente decisões irreflectidas. Dispensamos os últimos aliados: a esperança e a confiança. Aí, derrotamo-nos a nós mesmos. O medo, que é apenas uma impressão, triunfou sobre nós.
O assunto é difícil de colocar em palavras. Porque o medo, o medo real, aquele que nos sacode até aos fundamentos, como o que sentimos quando levados a enfrentar o nosso fim mortal, aninha-se-nos na memória como uma gangrena: procura apodrecer tudo, mesmo as palavras com que se fala dele. Por isso, temos de lutar duramente para exprimi-lo,. Devemos lutar duramente para fazer brilhar a luz das palavras sobre ele. Porque se o não fizermos, se o nosso medo se torna uma escuridão inexprimível que evitamos, que talvez até consigamos esquecer, abrimo-nos a posteriores ataques de medo porque nunca lutámos verdadeiramente contra o opositor que nos derrotou."

In "A vida de Pi" de Yann Martel

7 comentários:

sal disse...

Tão bom! Eu, pessoalmente, tenho pavor do medo.

Margarida Alegria disse...

Texto certeiro!
Tentou-me a ler o livro.
O medo pode paralisar.

luisa disse...

O medo paralisa.
Ainda não li o livro nem vi o filme.

Meu Velho Baú disse...

Não vi o filme.
Uma descrição fantástica do "MEDO"

Anónimo disse...

já vi o filme:)

O medo deixa-nos sem chão, desconfortáveis e paralisados.

Se aprendermos a dizer NÃO, é meio caminho para não ter medo. Aprendi isso nos últimos meses:)) Beijinhos

Tanita disse...

Não tinha curiosidade por ese livro, não sei porquê, mas este bocadinho deixou-me presa.
E sim, o medo é mesmo um grande adversário da vida, tenta paralizar-nos e para o vencermos temos de ser muito fortes ou cegos.
Bj**

gralha disse...

E é engraçado como a forma de lidar com o medo é um factor tão distintivo (e significativo) entre as pessoas.

(o meu mais pequeno anda na fase dos medos nocturnos, espero que passe depressa mas sabe-me bem espantar-lhe os medos com a minha serenidade)