"Tenho
de dizer uma palavra acerca do medo. É o único verdadeiro
adversário da vida. Só o medo pode derrotar a vida. É um
adversário esperto e ardiloso, que eu bem o sei. Não tem decência,
não respeita lei nem convenção, não mostra piedade. Vai ao nosso ponto mais fraco, que encontra com uma facilidade certeira. Começa
sempre na nossa mente. Num momento, estamos a sentir-nos calmos,
seguros, felizes. E, depois, o medo, disfarçado com as vestes da
dúvida afectada, introduz-se na nossa mente como um espião. A
dúvida encontra a descrença e a descrença procura empurrá-la. Mas
a descrença é um soldado de infantaria mal armado. A dúvida
vence-a sem grande dificuldade. Tornamo-nos ansiosos. A razão vem
travar a batalha por nós. Somos tranquilizados. A razão está bem
equipada com a última tecnologia das armas. Mas, para nosso espanto,
a despeito da táctica superior e de um inegável número de
vitórias, a razão é vencida. Sentimo-nos enfraquecidos,
vacilantes. A nossa ansiedade torna-se pavor.
Depois
o medo trabalha todo o nosso corpo, que já está ciente de que
qualquer coisa terrivelmente errada se está a passar. Já os nossos
pulmões saíram voando como pássaros e os intestinos deslizaram
como uma cobra. Agora a nossa língua pende morta como um gambá,
enquanto o maxilar começa a galopar no mesmo sítio. Os ouvidos
estão surdos. Os músculos começam a tremer, como se tivessem
malária, e os joelhos abanam, como se estivessem a dançar. O
coração retesa-se com demasiada força, enquanto o esfíncter se
relaxa demasiado. E assim acontece ao resto do corpo. Todas as partes
do corpo, da maneira mais própria de cada uma delas, se desintegram.
Só os olhos funcionam bem. Eles dão sempre a devida atenção ao
medo.
Tomamos
rapidamente decisões irreflectidas. Dispensamos os últimos aliados:
a esperança e a confiança. Aí, derrotamo-nos a nós mesmos. O
medo, que é apenas uma impressão, triunfou sobre nós.
O
assunto é difícil de colocar em palavras. Porque o medo, o medo
real, aquele que nos sacode até aos fundamentos, como o que sentimos
quando levados a enfrentar o nosso fim mortal, aninha-se-nos na
memória como uma gangrena: procura apodrecer tudo, mesmo as
palavras com que se fala dele. Por isso, temos de lutar duramente
para exprimi-lo,. Devemos lutar duramente para fazer brilhar a luz
das palavras sobre ele. Porque se o não fizermos, se o nosso medo se
torna uma escuridão inexprimível que evitamos, que talvez até
consigamos esquecer, abrimo-nos a posteriores ataques de medo porque
nunca lutámos verdadeiramente contra o opositor que nos derrotou."
In "A vida de Pi" de Yann Martel
7 comentários:
Tão bom! Eu, pessoalmente, tenho pavor do medo.
Texto certeiro!
Tentou-me a ler o livro.
O medo pode paralisar.
O medo paralisa.
Ainda não li o livro nem vi o filme.
Não vi o filme.
Uma descrição fantástica do "MEDO"
já vi o filme:)
O medo deixa-nos sem chão, desconfortáveis e paralisados.
Se aprendermos a dizer NÃO, é meio caminho para não ter medo. Aprendi isso nos últimos meses:)) Beijinhos
Não tinha curiosidade por ese livro, não sei porquê, mas este bocadinho deixou-me presa.
E sim, o medo é mesmo um grande adversário da vida, tenta paralizar-nos e para o vencermos temos de ser muito fortes ou cegos.
Bj**
E é engraçado como a forma de lidar com o medo é um factor tão distintivo (e significativo) entre as pessoas.
(o meu mais pequeno anda na fase dos medos nocturnos, espero que passe depressa mas sabe-me bem espantar-lhe os medos com a minha serenidade)
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